[POESIA] Maryanne


Mas sei o que sou;
Fui feita de consequências
Não tenho lápis ou borracha
Apenas uma caneta
E eu mesma como extensão
Não há pensamentos ou indagações
Apenas porque não há dualismo no concreto
Há somente mentes tomadas pelo entorpecimento
Não existe tempo-espaço
Nem o que chamam comumente de "segunda chance"
Não há ninguém
Há sorrisos amarelos e análises
Eles apenas vêem tatuagens e correntes
E ateístas e crentes
Mundanos em becos escuros
Vêem perdidos e vagabundos

Me é desconhecido O Mundo
Me são conhecidos os acidentes intencionados

Me é conhecido os gritos em silêncio, 
Me são conhecidas memórias esquecidas,

Desconheço o "Justo" ou o "Mérito"
Desconheço o consumo além da própria fome
Não há nada exceto o Nada
E um soneto de palavras inúteis

Por Julia Araújo


O não-lugar dos sobreviventes de estupro dentro do debate sobre o mesmo.

A falsa equivalência entre o medo e vivência.

Cena do clipe "Til It Happens to You", de Lady Gaga, sobre estupro nas universidades americanas

A cada 11 minutos, uma pessoa é estuprada no Brasil.
  Na manhã desta quarta-feira um dos agressores publicou em seu Twitter o vídeo registrando um estupro coletivo de uma menor de idade. A internet se mobilizou! Porém não tão positivamente quanto fora a intenção.
  Links do vídeo, prints de conversas entre os estupradores e descrições do ocorrido rapidamente foram divulgadas; tornando-se de fácil encontro paras mãos de misóginos ou do ciclo de conhecidos da garota, que não saberemos como reagiu. O trauma que ela sofreu? Será agravado pela exposição. Tamanha exposição que fez com que em dois dias o nome e rosto dela estampasse as redes sociais, a história de sua vida um jornal nacionalmente reconhecido – como se algo pudesse justificar o ocorrido. Teremos todos culpa como aqueles 33 homens.
  Também se tornou impossível ser sobrevivente em uma rede social sem cruzar com algum gatilho - muitos de nós tivemos crises.
  E novamente se comprovou que o debate sobre estupro e pedofilia não enxerga a necessidade de nos considerar ou ouvir, tirando de nós a única coisa que julgávamos ser verdadeiramente nossa – nossas histórias.

Oi, eu fui estuprada. Não junto com a Fulana, não pela minha “sororidade” com a dor da Beltrana. Sozinha. Sozinha com um homem 50 anos mais velho do que eu, então criança – vejo seu rosto e cabelos grisalhos ao escrever isso. Uma narrativa e mil complicações que pertencem a mim, e não a sua empatia.
  O estupro não está tão longe quanto se pensa. Você conhece sobreviventes de abuso sexual. Talvez vocês sejam amigos, talvez seja a secretária do seu consultório médico. Estamos por todos os lugares. Quantos de nós passamos de estatísticas para você?
  Essa insistência em enxergar o estupro como algo distante – a cena de terror na rua escura com o desconhecido violento - ajuda apenas ao agressor. Sendo a maioria dos abusadores conhecidos de suas vítimas – parentes, amigos, namorados. Sendo os homens ensinados a considerar o silêncio um sim, que o consentimento é conquistado através de insistência ou uma dose de álcool. Porém se você não pode negar, não está verdadeiramente concordando.
“Bem, mas o que você estava vestindo? O quão alto gritou não?”
  Contudo o estupro é tão próximo que toda vez que se profere seu nome em uma sala de aula, uma aluna encolhe em seu flashback. Nós vemos. Vocês não. Vemos como toda piada e culpabilizão atinge ao menos um de nós.
  Vemos a relutância em nos abrirmos, pois tantos já não acreditaram em nós.
  Vemos a revolta nos olhos do nosso parceiro quando pela primeira vez, com tremenda dificuldade, contamos nossa história. Meses depois ele grita conosco por um toque dele funcionar como um gatilho e nos fazer pedir para recuasse, afinal, a culpa é nossa por não conseguir confiar. A culpa eles sempre afirmam ser nossa.
  Vemos a mídia retratando as mulheres estupradas com Síndrome de Estocolmo (que já deveria ter sido abandonada pela psiquiatria, junto com a histeria) ou vingativas. Sobreviventes de pedofilia quase não falam, foram “quebrados” pelo resto da vida.
  Vemos os olhares de pena quando passamos, resumindo-nos a uma história triste.
  Também vemos a falta de hesitação em se apropriarem da nossa dor e das nossas narrativas para algum debate feminista. É para nós, não é mesmo? E quando as marcas deixadas pelo estupro de uns se curam, ficam as da exposição e das falas sem qualquer consideração.
  O “nós” é de sobrevivente. Não de todas as mulheres. Porque assim como (felizmente) nem toda mulher tem uma história, consideráveis garotos têm.
  O medo que todas sentiram deve sim ser abordado! Mas não é o suficiente para que entenda o que a moça carioca tem passado. Cada estupro é seu caso isolado. E deixa marcas físicas e psicológicas distintas.


O debate sobre estupro é necessário, mas já passou o momento em que verdadeiramente considere sobreviventes. 

"A piada do estupro"

De Belissa Escobedo e Rhiannon McGavin



“Toc toc”
“Quem é?”
“Piada com estupro”
“Piada com estupro quem?”
“Piada com estupro que não tem a menor graça”

Não se preocupe, nós somos boas vítimas! Não vamos chorar alto demais ou exigir sua atenção ou pedir alertas de gatilho.

  Homens gostam de usar a desculpa “garotos também são estuprados” quando ouvem mulheres falando sobre suas experiências pessoais.
 Primeiramente,
“garotos são estuprados” deveria ser sua própria oração, se você está apenas olhando para o trauma deles como uma oportunidade de silenciar mulheres sobreviventes, então você é um babaca.
 Em segundo lugar, todos os homens sobreviventes que NÓS conhecemos, te dariam um soco na cara por dizer isso.

  E seus amigos que não são sobreviventes não conseguem se simpatizar com você até terem ouvido todos os detalhes sórdidos... “Por favor, descole seu pornô em outro lugar”.
  E quando você consegue a empatia delas soa como
“eu já levei cantada na rua então entendo perfeitamente!” “alguém pisou no meu pé semana passada, foi um homem, eu me senti tão invadida!”.

  E aos garotos que escrevem poemas como “Às garotas estupradas, não se preocupem. Existem caras legais por aí! A LUZ NO FIM DE UM TÚNEL TÃO ESCURO”. Eles vão segurar sua mão no tribunal e tudo mais! Obrigada à Deus por em algum dia de meu futuro eu arranjar um pinto inteligente!
  Sabem, esses poetas te dirão: “Violetas estão florescendo nas sombras embaixo dos seus olhos”. Não são violetas, é pele. Eu sei que é pele. É uma boa pele! Vai continuar sendo pele independentemente das metáforas que você colocar nela.

  Você estará lá quando eu chorar (até que meus olhos fiquem inchados e vermelhos)
  Você não vai rasgar minha lingerie de renda (porque ela foi cara, e faz eu me sentir como se eu
valesse algo)
  Assim que descobrir que a única coisa que entra na minha garganta é um tubo de alimentação na área psiquiátrica do hospital, você irá embora.

  E se você realmente quer um relacionamento curador como você conversa sobre isso se a linguagem está contra você?
  “Ei, quer transar?” “Fuder” “Me chupa!”
  TUDO É TÃO VIOLENTO!

  Como flertar com uma/um sobrevivente de estupro: se aproxime lentamente e com cuidado, não faça qualquer movimento brusco ou barulhos altos.
  “Oi, gato, eu tenho ansiedade, depressão, stress pós-traumático e uma baita insegurança sexual”
  “Quer passar em casa e segurar o meu cabelo enquanto eu vomito?”

  E então existem algumas feministas que pensam terem a posse de NOSSAS poesias e narrativas, porque, parafraseando-as “Na sociedade patriarcal todas as mulheres estão constantemente ameaçadas pelo estupro”.
  “O que isso nos torna?”
  “Calma, Belissa, EU ESTOU ME TORNANDO UMA ESTÁTISTICA”
  “Santo spray de pimenta, Batman!”
  “SÓ CONSIGO ENXERGAR EM BINARISMO! OS NÚMEROS UM PARECEM PÊNIS”
  Rápido, você precisa se recompor para falar sobre
as Marchas das Vadias.

  Realmente, nada ajuda mais sobreviventes de estupro de todos os gêneros, etnias ou classe econômicas do que brancas ricas andando por aí seminuas enquanto colaboram com a polícia.
  Porque os policiais historicamente são tão bons em
apoiar vítimas e pegar estupradores.

  Já estou farta das frases de efeito das Marchas das Vadias também.
“Não me trate mal por ser vadia” Que tal não me chame de vadia NUNCA?
 “Homens de verdade não estupram!” Ah, merda, deve ter sido um fantasma então!
 “Consentimento é
sexy” CONSENTIMENTO É SEXY? LINGERIE É SEXY. CONSENTIMENTO É UM DIREITO HUMANO BÁSICO!

  Vocês deveriam ser os adultos que nos inspiram, mas tivemos que amadurecer na sétima série.

  “Humor cura a dor” nós apenas queremos saber que vocês estão rindo CONOSCO. 

  Nós podemos fazer piada com isso porque é nosso para fazer piadas com, de maneira similar a como nossos hematomas são nossos para cutucar, e seus para manter distância.  

A importância dos termos "monossexual" e "bifobia" para o movimento bissexual


(E da própria luta do B - que não significa bicicletas - dentro do LGBT) 

Arte de Bruna Morgan, do Universo em Bolha de Tinta

  Por muito tempo não soube que pessoas como eu existiam, que eu não "precisava escolher um - e melhor que fossem homens!". Depois, não acreditei que minha orientação sexual poderia ser mais do que uma piada, ir além da promiscuidade. Encontrar um movimento organizado - mesmo que pequeno e com sua falta de recortes -, seus espaços seguros; foi-me um marco, uma retomada de fôlego. Eu era válida. E sei que não descrevo apenas minha situação, como a de quase todas as pessoas bissexuais.
  Temos poucos dados sobre nós, os existentes não são agradáveis: a saúde mental das bissexuais está atrás da de lésbicas¹ (com 64% de chance a mais de desenvolver um transtorno alimentar, 37% de sofrer com automutilação e 26% de ter um quadro depressivo), 61% das mulheres bissexuais sofrem violência doméstica – estupro, agressão ou perseguição - de parceiros² (não, essa não vem apenas de homens cisgêneros), e 45% já cogitou ou tentou cometer suicídio³.
  Contudo, é proibido falar em bifobia, assim decidiram algumas feministas lésbicas e heterossexuais ao colocarem sua teoria acima de nossas vivências - o que apesar de invisibilizar, não impede nosso sofrimento.

Foto originalmente publicada no site Bi-sides

“Bifobia não existe, pois não é estrutural. O que você sofre são estilhaços de lesbofobia”

  É inegável que termos específicos dentro da militância trazem visibilidade a determinada pauta além de ajudar a organizar e facilitar o debate. Então por que não seria assim para nós? Precisamos do termo bifobia porque a lesbofobia não nos contempla inteiramente, precisamos de uma palavra que descreva os preconceitos e violências que passamos por sermos bissexuais, e não por nos relacionarmos com uma mulher.
  Mulheres bissexuais sofrem lesbofobia ao serem hostilizadas por beijarem outra moça em público, isso é fato. Mas mulheres bissexuais sofrem bifobia ao serem chamadas de “depósito de DST” ou terem sua orientação sexual tomada como consentimento – uma ideia próxima de “bissexual é só uma vadia, então com bi pode tudo”. Como o conceito de interseccionalidade aponta, existe um sobrecruzamento de opressões.
  A própria bissexualidade vem com uma invisibilidade, desprezo e fetichização características. Os relacionamentos tem maior tendência a serem abusivos. Por essas e outras manifestações bifóbicas, se faz necessário um movimento bissexual.
  Além disso, existir mais debate acerca do termo bifobia – sendo esse problemático por partir de monossexuais que não consideram a vivência de bissexuais antes de dissertar – do que sobre essas situações, já é um pequeno sintoma do iceberg que temos de enfrentar por nossa orientação sexual. E se não é estrutural, por que as estatísticas apontam tamanho sofrimento de pessoas bis?    

Ilustração de Murilo Chibana

"Dizer bifobia implica sofrer por namorar mulher e homem, e heterofobia não existe. Você não apanha por segurar a mão um homem na rua"

  Primeiramente, parem de definir a bissexualidade como o PH neutro entre as monossexualidades. Eu não sofro por ser meio homo e meio hétero, pois não o sou. Eu sofro por ser bissexual, uma orientação à parte e não fundamentada em confusão e promiscuidade.
  Em segundo lugar - e também quebrando a ideia de "privilégio de passabilidade hétero" - não ser incomodado ao andar na rua não é uma eficiente definição de opressão. Uma lésbica tipicamente feminina caminha em paz se estiver acompanhada de um amigo homem na rua - e os lerão como um casal. Um homem cis e heterossexual pode apanhar se sair de batom vermelho. Ele é oprimido?
  Apesar de estar livre de agressão de estranhos, um relacionamento heterossexual não impede a bifobia de se manifestar em minha vida de outras formas. O dito homem me tratando como um troféu e um objeto para realizar suas fantasias sexuais, por exemplo - e não se enganem, toda mulher bissexual ouve comentários dessa visão ao menos uma vez em sua vida. 

Ilustração de Bruna Morgan

"É por se relacionarem com homens que a saúde mental de mulheres bissexuais é pior do que de lésbicas"

  Relacionamentos abusivos não são o único sofrimento de mulheres bissexuais, e parte deles (mesmo que a menor) tem outras mulheres como abusadoras.
  A diferença, talvez esteja em um movimento social ter conquistado maior espaço e visibilidade do que o outro – mesmo que ainda falte uma longa caminhada. Isso permite que algumas mulheres lésbicas ainda perpetuem estereótipos problemáticos sobre a bissexualidade...

Ilustração da página "Devaneios com canela"

"É lesbofóbico questionar lésbicas por não se relacionarem com bissexuais, sendo isso auto-preservação. Não queremos pegar uma DST, sermos trocadas por macho ou beijar uma boca que já chupou pau. Aceitem um não"

  Não se sentir atraído por uma pessoa de determinado grupo do gênero que te atrai, é uma coisa. Desprezar o grupo inteiro é problemático e normalmente justificado em preconceitos/estereótipos – sejam gordes, negres, trans ou bissexuais. Apontar isso é apenas um questionamento do “gosto pessoal”, que você pode ou não aceitar.
  Preciso dizer que doenças sexualmente transmissíveis não ocorrem de modo diferente com pessoas bissexuais? Que traição é questão de caráter? Ou que nem todas as pessoas do mundo são cisgêneras?
  Um outro problema da frase é a linguagem de teor sexual e ofensiva que é diariamente bombardeada à mulheres bissexuais - vinda de dentro e fora do meio LGBT. Não são casos isolados. É todo um sistema pesando em nossas costas, dificultando auto-afirmação, – e que pessoalmente já me trouxe muita angústia.

Ilustração do projeto "Mulheres" de Carol Rosetti

“Dizer monossexual é homo/lesbofóbico. Você está colocando héteros e homossexuais no mesmo saco”

  Bem, sim e não.
  Com o avanço de debates sobre bissexualidade e bifobia, se fez necessário um termo que descrevesse as pessoas que não a experienciam as vivências de bissexuais e de pessoas com outras orientações similares (como pansexualidade e polissexualidade), por se relacionam apenas com um gênero: os monossexuais!
  Assim como dizer “homem cis” não coloca um branco heterossexual como igual um negro gay – estes tem em comum apenas não sofrerem misoginia - monossexual não descreve um grupo homogêneo.
  Debater a opressão de bissexuais nunca foi diminuir a de homossexuais, apenas reconhece-las como distintas.


Projeto fotográfico realizado pelos estudantes de Jornalismo da USP: "Sexualidade e Ignorância"

Bônus: “Paga de coladora de velcro na internet, mas na vida real é pinto pra lá, pinto pra cá”

  Podemos parar de resumir pessoas a genitálias e fiscalizar a sexualidade alheia?
  Perguntar para alguém bissexual “qual você prefere?” “já fez um ménage?” ou dizer “você acabou casando com tal pessoa, sabia que era só hétero/homo querendo chamar atenção” não e diferente de acreditar que uma lésbica deveria ao menos ficar com um homem para ter certeza.
  É bissexualidade. Algumas moças bis vão ter um relacionamento com homens. Outras com mulheres. Nenhuma delas deixa de ser bissexual.
  Bissexual é minha identidade, e não uma questão de opinião, não preciso te mostrar uma carteirinha ou meu histórico de namoros.

Eu não me importo se você considera correto dizer ‘bifobia’ ou ‘preconceito contra bissexuais’, pois para mim nunca foi apenas um conceito teórico e abstrato; é uma realidade diária. 

"A Bíblia dizia Adão e Eva, então eu peguei os dois" -orginal


1.     1.  Pesquisa realizada pela Escola de Higiene e Medicina Tropical de Londres publicada em 14/01/15 na revista científica “Journal of Public Health”.

2.      2. Pesquisa de 2010 de The National Intimate Partner and Sexual Violence Survey (NISVS), que também relata que 41% das mulheres bissexuais entrevistadas já foram estupradas, por parceiros ou não.

3.      3.  Tese de 2011 da Comissão de Direitos Humanos de São Francisco. Homens bissexuais apresentaram uma taxa de 35% de comportamento suicida. 
u
Por Bruna Andrade, mulher bissexual

Relacionamentos Abusivos


Foto de Yung Cheng Lin
“Se ele te bateu, é porque gosta de você”, a mãe de Mariana sempre dissera. Mulher simples, calorosa, mas rígida. O pai, (pseudo) presente nos jantares - estava sempre trabalhando, sempre cansado –, se mostrava um homem ciumento: reclamava da saia acima do joelho quando a filha a usava e não a deixava conversar com garotos, afinal, Mariana era uma moça de família. A garota deveria agradecê-lo por ser um pai tão preocupado.
  Seu primeiro namoro, aos 15 anos e escondido, foi com o romântico e gentil Luís, que sempre lhe escrevia poesias e adorava beijá-la quando podia – às escondidas na sala de aula, num corredor vazio. Até o dia em que suas mãos escorregaram pelas costas dela até os seios. Mariana congelou. “Está tudo bem, não está?” perguntou como quem não espera uma resposta. O que ela deveria ter feito naquela situação? Era contrário a tudo que lhe ensinaram, contrário à personalidade que o garoto até então mostrara. “Eu acho que está”, ela sussurrava sem confiança. Ali estava, com o rapaz que dizia a amar e ela não o queria. Não daquela forma. Mas o deixou continuar, o deixou seguir em frente, pois não sabia como reagir. E, com o passar do tempo, Luís dizia que ela já não era a mesma Mariana e ela não sabia como responder.
  Não foi seu último relacionamento. Entre as paredes da faculdade estava Carlos Eduardo, com seus olhos azuis charmosos e inteligentes, dizendo-lhe as coisas mais lindas, trazendo rosas quando a buscava para um cineminha – um real cavalheiro. O mesmo Carlos que gritou com ela em seu primeiro pequeno deslize; que a afastou de Rafael, o melhor amigo que supostamente não a abraçava como deveria, ameaçando deixá-la caso não o fizessem; que dizia para não usar aquele vestido, não na frente dos amigos dele; ou que ela apenas queria chamar atenção com aquele batom vermelho. Mas, bem, Carlos crescera vendo o pai agredir a esposa, quem poderia culpa-lo por seu temperamento? E também, o que esperariam dele pelo modo como Mariana fazia tudo errado?
 Mas Cadu era diferente, jamais levantara a mão para ela. Na maioria do tempo era doce e estava certo em dizer que Mariana não podia desistir deles, de toda sua história juntos, por ser sensível demais, por não aguentar a realidade. Então Mariana se esforçava para agradá-lo – tentava ser a esposa gentil, não reclamar – assim evitava os gritos, os insultos na frente dos amigos. Assim os dois podiam viver em paz.
  Mesmo assim, quando Carlos Eduardo saía com os amigos para ir a um barzinho ou jogo de futebol, Mariana se pegava chorando no quarto ou banheiro. Apesar do emprego como advogada, do marido amoroso e da casa dos sonhos. Talvez não apesar da loucura. “São os hormônios da gravidez” qualquer um lhe diria. Quem sabe com os filhos as coisas não mudassem..?
Feito pelo projeto Livre de Abuso
  Marina, provavelmente, jamais perceberia a armadilha em que estava mantida, assim como milhares de mulheres não percebem que, diariamente, somos direcionadas para não reagir às mais diversas formas de abuso.
  Pessoas tóxicas, relacionamentos abusivos. Quem de nós nunca ouviu essas palavras? Acometem pessoas de todos os gêneros, etnias, classe social ou orientação sexual, mas cada minoria funciona como um ponto bônus, um motivo para se silenciar.
  E, por que diabos nós, de uma maneira geral, pensamos sempre no pai de Cadu e nunca no próprio garoto? Diria que as violências sutis nos doutrinam a naturalizar - ou até aceitar - a ideologia por trás das mais evidentes opressões. Como reagir depois de anos em que definiram sua natureza como para não levantar a voz? Te programaram para isso? Eles lhe ensinaram a, nas palavras de Gonzaguinha, “abaixar a cabeça e dizer sempre ‘muito obrigado’”. Ensinaram os homens que devem ser agressivos para manter o controle. E não é criticando as vítimas que transformaremos isso.
  Um relacionamento abusivo é caracterizado por um desiquilíbrio de poder, um lado cresce à medida que o outro se esgota, murcha. Controle, possessividade, agressividade, manipulação e inconstância são conceitos fundamentais para a discussão do tópico, e se tornam tão presentes quanto o nitrogênio do ar, enquanto tudo é romantizado. Vive-se um ciclo abusivo, e o tempo se torna um agravante tanto para a dificuldade de saída quanto para as dinâmicas de relacionamento problemáticas. Os artifícios utilizados para sustentar isso, porém, variam. 

Os Diferentes Tipos de Abuso 


Ciclo da Violência de Waller

Os casos (ainda mais) invisíveis

Men In Abusive Relationships

Apesar de relacionamentos abusivos majoritariamente caracterizarem uma violência de gênero, eles não se limitam ao patriarcado (afinal, pessoas egocêntricas ou obsessivas existem em todo e qualquer grupo).

  Homens no lugar do sobrevivente?! Sim, e às vezes com agressoras mulheres. Isso não deveria causar estranhamento ou chacota, e sim uma mobilização por apoio. Eles têm maior probabilidade de permanecerem calados e dificuldade em encontrar ajuda, afinal, um homem não chora, não pode ser vítima – quem dirá de uma mulher. Parte de nossa luta deve ser por esses moços, que em momento algum são menos válidos.

Problema de casal hétero? Menos ainda. A comunidade LGBT tem suas próprias questões com relacionamentos abusivos, que não devem ser silenciadas e precisariam de um texto inteiro para serem propriamente discutidas. O peso do armário, o medo da solidão e falta de apoio familiar apenas agravam a situação - somatizados a problemas de auto-aversão, invisibilidade e descrença.
  Não é novidade ou surpreendente dizer que o meio gay romantiza relacionamentos abusivos e fetichiza estupro, basta olhar para pornografia ou expressões artísticas. Imersos nessas referências negativas, no mito de que homens homo e bissexuais não buscam algo sério, e assumindo que alertas não passam de implicância, muitos homens não dão a jogos psicológicos ou coação sexual – entre outros – o devido valor e permanecem com parceiros tóxicos.
  Falando em abuso sexual, é quase uma ocorrência de praxe para assexuais em busca de relacionamentos amorosos. Mesmo dentro de um saudável, são acusados de serem os verdadeiros vilões - afinal, como manter um relacionamento sem sexo? E assim como nem todos os assexuais são arromânticos, nem todos não tem interesse em sexo - seja quais forem seus motivos para tal. Todavia, para muitos isso é algo que não os interessa, penoso, que gera repulsa, e só acabam cedendo por pressão do parceiro – “é importante pra mim”, “quem sabe você não muda?” –, cruzando limites que não deveriam (muitos chegam a se sentirem quebrados por não conseguirem se adequar a essa suposta normalidade). O nome disso é estupro.
  Menos discutido ainda ou perceptível quando se está dentro de um são relacionamentos abusivos entre duas mulheres. Sim, acontece. Há uma super valorização do ciúme e do controle, há bifobia, há duas moças que foram socializadas para se culparem por qualquer destrato, acreditarem que o merecem e permanecerem caladas, mas acima de tudo há uma crença de que isso não acontece dentro de relacionamentos lésbicos - que outra mulher, ou uma feminista, não poderia lhe fazer nada de mal. Contudo não é loucura ou exagero, os casos são reais, e é preciso manter os olhos abertos.
  O abismo é ainda mais profundo e banal quando falamos de parceiros abusivos de pessoas transexuais/trangêneras. Em meio à solidão estrutural, a transfobia e exotificação, aos “você só serve para sexo”, a violência e a dificuldade de encontrar suporte muitos acabam se relacionando com parceiros agressivos ou manipuladores por estes respeitarem sua identidade de gênero - talvez nem isso.
  O ponto é: não devemos tratar pessoas abusivas como algo distante de nós, e elas sequer se limitam apenas a relacionamentos amorosos – pode ser um amigo, um parente - apesar de esse ser o foco deste texto.

Sinais de Um Relacionamento Abusivo

"Pare com isso! Pare de fuder com a minha cabeça"
Cena da série britânica Skins (Juventude à Flor da Pele)
  •   Você está com medo: o comportamento do seu parceiro te aflige, você está sempre a espera de uma possível crise, reluta a expor seus desejos e ideias.
  •   Você não consegue pensar sozinha/o, valoriza mais a opinião do outro e/ou o relacionamento te confunde: pensar no relacionamento te faz acreditar que enlouquecestes então optas por não o fazer, apenas concordas com/aceitas a opinião do parceiro, sempre estás errada/o em discussões.
  •   Alertas de amigos e familiares: eles dizem que o relacionamento não está te fazendo bem, ou que você é outra pessoa perto do agressor.
  •   Superioridade: suas opiniões e conquistas são menosprezadas enquanto as do abusador vangloriadas, ele é sempre o correto, diz que você tem sorte por ter alguém tão bom apesar de sua quantidade de defeitos.
  •    Controle: constante observação e pitacos sobre todos os aspectos de sua vida. Você precisa de aprovação para usar certa roupa, ir a tal lugar com alguma pessoa. Mesmo sem proibir explicitamente mostra irritação ou contragosto.
  •   Isolamento: crítica tuas companhias, te afasta deles. Reclama de senhas em suas redes sociais, de você não estar sempre com ele ou precisar de espaço.
  •   Manipulação/chantagem: distorce o que você diz, ameaça partir caso você não cumpra algo, utiliza frases como “se você me amasse faria” (apelo emocional), diz que se mataria sem você.
  •   Não aceita “não”, exige explicações: faz com que você acredite ser incoerente por mudar de ideia, diz que estar em um relacionamento implica um “sim”, insiste em você justificar todas suas decisões. A recíproca não é verdadeira.
  •   Ciúmes/possessividade: não gosta que você fique sozinha/o ou converse com alguém que não ele, fala de você como uma propriedade.
  •   Agressão: alguma vez já usou força contra você.
  •   Humilhação: comparações dolorosas, críticas a tudo que fazes, constantes palestras sobre teus defeitos, te ridiculariza na frente de amigos.
  •   Pune você: se tu cometes um deslize, te priva de algo, relembra constantemente, fica irritado por dias.
  •   Mudanças de humor: rude em um momento, gentil no outro. Agride-te e insulta, mas depois se desculpa incrivelmente arrependido.
  •   Você perdeu sua auto-estima: é muito mais insegura/o desde que estão juntos.
  •   Espera de mais: tem expectativas inatingíveis para você (estéticas, emocionais, comportamentais) e poucas para si, espera que você sempre esteja lá, mas não faz o mesmo.
  •   Negação e memórias emocionais: não reconhece os próprios erros, sempre te silencia com o mesmo evento – um trauma dele, algum erro teu.

"E por que não saem?"


  Terminar qualquer relacionamento amoroso é difícil – até por uma questão fisiológica, já que você está cortando sua fonte de dopamina. Com um parceiro abusivo não é diferente, se não pior.
  Muitas vezes a vítima não percebe ou não acredita no que está acontecendo tamanha a manipulação e o isolamento. O relacionamento inteiro é construído para que o sobrevivente não enxergue uma vida que não uma com o abusador. Mesmo quando percebe, existem inúmeros motivos para não sair de um relacionamento abusivo – amor, esperança de que a pessoa mude, dependência financeira ou emocional, proteger os filhos, medo da violência, vergonha, não querer passar pela burocracia, pressão para um relacionamento perfeito, a fase lua de mel, medo de recriar a própria identidade ou da solidão – e gostar de apanhar/sofrer nunca é um deles.
  Dizer isso ou criticar a pessoa por ter, em primeiro lugar, entrado/permanecido no relacionamento é discurso de culpabilização da vítima e ajuda apenas o agressor. 

Apoio

"Eu posso ter te perdido mas eu ganhei um pedaço de mim" -via

Como se proteger dentro de um relacionamento abusivo 

Se informe sobre o que está acontecendo

Saiba que existem várias pessoas na mesma situação e que não é sua culpa, você não enlouqueceu. Você tem um parceiro abusivo e é possível reduzir os danos. Apreenda a reconhecer os ciclos de abuso e sinais de perigo, para assim poder contornar situações ou saber quando se afastar.

Mantenha sua identidade, se coloque em primeiro lugar

Faça, na medida do possível, coisas que sejam por e para você, se congratulando por isso. Se aproxime de pessoas que não seu parceiro ou encontre um grupo de apoio, exponha suas ideias e problemas. Realize atividades que te deixem feliz, mesmo que pequenas. Repita para si mesma/o pequenas mensagens de positividade, amor próprio e validação. 

Escreva um plano de segurança

Escreva um plano e mantenha-o ao seu alcance. O plano deve conter soluções para crises: certifique-se de ter uma opção de que fazer se o abuso explodir, um lugar para ficar, ideias de como sair do relacionamento. Tenha planos para situações menos emergenciais/emocionais também, como uma atividade para cada comportamento abusivo (ex: ligar para um amigo depois de uma briga, ler uma lista de elogios quando o parceiro te insultar). Identifique suas necessidades e tenha mais de uma alternativa para cada uma delas. Se pergunte coisas como: "como x comportamento me machuca? O que me faria melhorar? Por que é importante cuidar de mim?"

Terminando o relacionamento 

  Decidir terminar com uma pessoa abusiva é um passo importante (e não se sinta mal caso demore a fazê-lo! Nem sempre é uma opção imediata), porém efetuá-lo é talvez o momento mais difícil e o mais libertador. Aceite o que vem acontecendo, pese as coisas em uma balança, se questione “eu gostaria de ver alguém que amo em meu lugar?”, “até onde eu aguento?”.
  Fale com amigos e familiares sobre os ocorridos e suas intenções, certifique-se de que terá com quem contar. Planeje o que dizer se quiser e tente cortar a pessoa o máximo possível de sua vida, não esperando a situação piorar. Lembre-se: você não deve uma explicação, e só porque tem amor não quer dizer que não tenha abuso. Um relacionamento deveria ser algo BOM e A MAIS em sua vida, nunca limitador ou desgastante.
  Também tenha em mente que um agressor muito provavelmente irá piorar após o término e talvez tente insistir; lembre-se que, caso a situação saia de controle, existem diversos recursos legais aos quais você pode recorrer.

Ajuda legal 

  Se a situação coloca sua integridade física em risco, não hesite em procurar a polícia ou uma delegacia. Existem vários Centros Integrados de Apoio à Mulher e delegacias especializadas, que irão te direcionar, ajudar a encontrar abrigo e a se manter. Se pretender confrontar a pessoa no tribunal uma ideia é registrar provas – como uma foto do abuso físico. Não se silencie, disque 180!
(Clique aqui para telefones e endereços das delegacias em cada estado)

E a vontade de voltar?

A maioria dos sobreviventes de um relacionamento abusivo relata um período em que ficaram tristes e se culparam, e uma segunda fase em que perdoavam a pessoa e começavam a sentir falta dos aspectos positivos. O melhor é manter-se ocupada/o (de preferência com lugares e atividades novos) e cercada/o de entes queridos. Eu pessoalmente gostava de rever o vídeo da JoutJout quando me julgava uma louca exagerada, e criei um bloco de anotações que revia durante a vontade de voltar, com as piores coisas que ela me disse/fez e frases que me lembrassem o que passamos (textos como esse, poemas, canções) e só mexi nas lembranças boas quando já conseguia enxergar a situação de fora. 

Superando 

  Não se apresse. Procure um terapeuta, grupo de apoio ou um programa como a CVV (hotline e chat) caso esteja se sentindo muito mal ou confusa/o. Tente se afastar do abusador, cerque-se de pessoas positivas. Coloque seus sentimentos para fora, seja em uma conversa com amigos ou seu psicólogo, se exercitando ou fazendo alguma arte como desenhos e poemas – não se preocupe com qualidade, o importante é não guardar isso dentro de si
  Você já sobreviveu a muitas coisas, vai sobreviver a isso. Você tem o direito de ocupar espaço, de se colocar em primeiro lugar – isso é sobrevivência. E você merece mais do que alguém que não te respeite ou tente compreender. 


"Agora que você está fora de minha vida estou bem melhor. Você pensou que eu ficaria fraca sem você, estou mais forte"
Trecho do vídeo Survivor da Clarice Falcão (cover de Destiny's Child)

Links Úteis

180 - Delegacia da Mulher
141 - CVV

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